sábado, 14 de maio de 2011

ALFABETIZAÇÃO E PCN



ALFABETIZAÇÃO E ENSINO DA LÍNGUA
                          Que escrita cabe à escola ensinar?

É habitual pensar sobre a área de Língua Portuguesa como se ela fosse um foguete de dois estágios: o primeiro para se soltar da Terra e o segundo para navegar no espaço. O primeiro seria o que já se chamou de “primeiras letras”, hoje alfabetização, e o segundo, aí sim, o estudo da língua propriamente dita.


Durante o primeiro estágio, previsto para durar em geral um ano, o professor deveria ensinar o sistema alfabético de escrita (a correspondência fonográfica) e algumas convenções ortográficas do português — o que garantiria ao aluno a possibilidade de ler e escrever por si mesmo, condição para poder disparar o segundo estágio do metafórico foguete. Esse segundo estágio se desenvolveria em duas linhas básicas: os exercícios de redação e os treinos ortográficos e gramaticais.


O conhecimento atualmente disponível recomenda uma revisão dessa metodologia e aponta para a necessidade de repensar sobre teorias e práticas tão difundidas e estabelecidas, que, para a maioria dos professores, tendem a parecer as únicas possíveis. Por trás da prática em dois estágios, está a teoria que concebe a capacidade de produzir textos como dependente da capacidade de grafá-los de próprio punho. Na Antiguidade grega, berço de alguns dos mais importantes textos produzidos pela humanidade, o autor era quem compunha e ditava para ser escrito pelo escriba; a colaboração do escriba era transformar os enunciados em marcas gráficas que lhes davam a permanência, uma tarefa menor, e esses artífices pouco contribuíram para a grandeza da filosofia ou do teatro grego.


A compreensão atual da relação entre a aquisição das capacidades de redigir e grafar rompe com a crença arraigada de que o domínio do bê-á-bá seja pré-requisito para o início do ensino de língua e nos mostra que esses dois processos de aprendizagem podem e devem ocorrer de forma simultânea. Um diz respeito à aprendizagem de um conhecimento de natureza notacional[1] : a escrita alfabética[2] ; o outro se refere à aprendizagem da linguagem que se usa para escrever.

A conquista da escrita alfabética não garante ao aluno a possibilidade de compreender e produzir textos em linguagem escrita. Essa aprendizagem exige um trabalho pedagógico sistemático.

Quando são lidas histórias ou notícias de jornal para crianças que ainda não sabem ler e escrever convencionalmente, ensina-se a elas como são organizados, na escrita, estes dois gêneros: desde o vocabulário adequado a cada um, até os recursos coesivos[3] que lhes são característicos. Um aluno que produz um texto, ditando-o para que outro escreva, produz um texto escrito, isto é, um texto cuja forma é escrita ainda que a via seja oral. Como o autor grego, o produtor do texto é aquele que cria o discurso, independentemente de grafá-lo ou não. Essa diferenciação é que torna possível uma pedagogia de transmissão oral para ensinar a linguagem que se usa para escrever.


Ensinar a escrever textos torna-se uma tarefa muito difícil fora do convívio com textos verdadeiros, com leitores e escritores verdadeiros e com situações de comunicação que os tornem necessários. Fora da escola escrevem-se textos dirigidos a interlocutores de fato. Todo texto pertence a um determinado gênero, com uma forma própria, que se pode aprender. Quando entram na escola, os textos que circulam socialmente cumprem um papel modelizador[4] , servindo como fonte de referência, repertório textual, suporte da atividade intertextual[5] . A diversidade textual que existe fora da escola pode e deve estar a serviço da expansão do conhecimento letrado do aluno[6].

 Mas a ênfase que se está dando ao conhecimento sobre as características discursivas da linguagem — que hoje sabe-se essencial para a participação no mundo letrado — não significa que a aquisição da escrita alfabética deixe de ser importante. A capacidade de decifrar o escrito é não só condição para a leitura independente como — verdadeiro rito de passagem — um saber de grande valor social.


É preciso ter claro também que as propostas didáticas difundidas a partir de 1985, ao enfatizar o papel da ação e reflexão do aluno no processo de alfabetização, não sugerem (como parece ter sido entendido por alguns) uma abordagem espontaneísta da alfabetização escolar; ao contrário, o conhecimento dos caminhos percorridos pelo aluno favorece a intervenção pedagógica e não a omissão, pois permite ao professor ajustar a informação oferecida às condições de interpretação em cada momento do processo. Permite também considerar os erros cometidos pelo aluno como pistas para guiar sua prática, para torná-la menos genérica e mais eficaz.

A alfabetização, considerada em seu sentido restrito de aquisição da escrita alfabética, ocorre dentro de um processo mais amplo de aprendizagem da Língua Portuguesa. Esse enfoque coloca necessariamente um novo papel para o professor das séries iniciais: o de professor de Língua Portuguesa.



Brasil. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmentros curriculares nacionais: Língua Portuguesa. Brasília: MEC/SEF,1997.





[1] Neste documento, entende-se por notacional o que se refere a sistemas de representação convencional, como o sistema de escrita alfabético, a escrita dos números, a escrita musical, etc
[2] A escrita alfabética é um sistema de escrita regido pelo princípio da fonografia, em que o signo gráfico representa normalmente um ou mais fonemas do idioma.
[3] Recursos coesivos são os elementos lingüísticos da superfície de um texto que indicam as relações existentes entre as palavras e os enunciados que o compõem.
[4] Isto é, funcionam como modelos a partir dos quais os alunos vão se familiarizando com as características discursivas dos diferentes gêneros.
[5] A intertextualidade é constitutiva do processo de produção e compreensão de textos. Implica as diferentes maneiras pelas quais
um texto, oral ou escrito, é dependente do conhecimento de outros textos previamente existentes para poder ser produzido e
compreendido.
[6] Conhecimento letrado é aquele construído nas práticas sociais de letramento, tal como especificado na nota 5.

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